sábado, 5 de março de 2011

Médicos(?): A eterna paz da [ir]responsabilidade


Num mundo onde a esperança virou irmã da utopia, acredito que algumas palavras de conforto já não bastam.

Quando chegamos à faculdade de medicina, muitos sentimos a concretude daquele sonho que antes nublava nossas mentes. Alegrias, compaixão pelo próximo – e pelo distante –, uma chance de mudar o mundo. Tudo parece estar bem aí, mais que à nossa frente, tão perto que podemos senti-los tanto quanto o jaleco que agora nos veste.

Hoje, no lugar desse sentimento indescritível que perdura ao longo do primeiro ano, vejo, estarrecido, o comodismo e o conforto que tomam conta desses sonhadores. Em poucos meses, a mão antes estendida e a mente que antes sonhara fecharam-se. Suas visões são obscurecidas por conceitos teóricos ou popularidade. O desejo de transcender a realidade resume-se a uma tristemente feliz música de Max Gonzaga.

Não digo que todos devem apaixonar-se perdidamente por políticas e movimentos sociais ou tornarem-se novos Gandhis – isso já seria esperar demais, estou errado? Admirar, nos tempos modernos, deixou de possuir uma relação ética e simpática em ações e caráter. Agora é simplesmente um olhar saudosista para algo que nunca conhecemos. Isso porque, não temos tempo nem energia para fazer qualquer coisa – talvez alguém com poder político faça algo a respeito, já que é obrigação somente deles, não é? Por que seria dos médicos? E os heróis que lutaram pela mudança que sonharam agora não passam de páginas de livros que enriquecem as editoras.

É-me triste pensar que o único sentimento que acaba resistindo ao longo de seis anos de graduação é a famigerada indignação. É fácil horrorizar-se com as notícias espetaculosas da televisão, enquanto conseguimos comprar tudo o que queremos à prestação e ainda reclamamos que somos roubados todo santo dia. Exigimos o sagrado direito da revista semanal a nossas portas pelas manhãs, junto ao carro zero comprado à prestação e nossas viagens de pacote sempre tranqüilas pela capacidade de confiar no convênio particular de saúde, enquanto apregoamos a cada aula de Saúde Coletiva e na interação com a comunidade a importância dos outros – nunca nós – dirigirem-se aos níveis primários de assistência antes de lotar nossos prontos-socorros e hospitais.

De que adianta estender a mão e recolher o braço depois, negando-lhe a força para levantar o outro? E de que adianta criticar modelos antigos se você não sugere o novo que você tem em mente? Qual a validade de uma crítica que não é divulgada, tampouco praticada ou defendida?

O que se perdeu após a geração dos tempos de chumbo que fez nós sermos esses jovens que se formam na atual prosperidade bancária? Não foi uma ideologia comunista ou de extrema-direita. Nem acho que foi algo que foi perdido. Ao contrário, ganhamos o legado de suor, lágrimas e inconformidade nas ações incisivas e práticas de nossos pais em seus tempos. Hoje, infelizmente, a causa deles é nosso sofá e teto que temos agora. E nada mais. Nenhum sonho deseja mais lutar, pois alguém já venceu por nós. E é muito difícil calejar nossas mãos para erguer a bandeira ou trabalhar por uma causa coletiva – não só a minha ou sua –, já que elas estão muito ocupadas puxando ferro nas academias ou macias demais com os caros cremes hidratantes que usamos. Antes meu corpo bonito que a emancipação social desses que não sabem que podem ter mais.

Quem é o analfabeto nessa sociedade e em nossas relações médico-paciente? Agora fazemo-nos de macacos budistas enquanto pedimos perdão a Mario Quintana e Bertold Brecht. E a paz está conosco. Só conosco.

Eu.

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